quarta-feira, 8 de julho de 2009

.subterfugiano.

"(...) O Evasão estava acabado, mas a longa história da sua construção ficava para sempre inscrita na carne de Robison. Cortes, queimaduras, cutiladas, calosidades, manchas indeléveis e refegos cicatriciais contavam a luta obstinada que por tão longo tempo travara para chegar àquela embarcação atarracada e alada. Na falta de um diário de bordo, olharia o próprio corpo quando quisesse lembrar-se.
Começou a reunir as provisões que embarcaria consigo, mas logo desistiu da tarefa ao pensar que convinha primeiro lançar à água a nova embarcação para lhe experimentar a estabilidade e torná-la estanque. O que na verdade o retinha era uma surda angústia, o receio de um fracasso, um golpe de sorte inesperado que reduziria a nada as possibilidades de êxito daquele empreendimento em que jogava a própria vida. Imaginava o Evasão a revelar logo nas primeiras provas algum vício redibitório; um excesso de água a calar o navio, por exemplo, torná-lo-ia pouco maleável e a mais pequena vaga cobri-lo-ia, ou, pelo contrário, não seria suficiente - e voltar-se-ia ao primeiro desequilíbrio. Nos seus piores pesadelos, mal tocava a superfície da água, logo se afundava a pique como lingote de chumbo, e ele, rosto imerso na água, via-o mergulhar, bamboleando-se, nas profundezas glaucas progressivamente sombrias.
Decidiu-se por fim a proceder ao lançamento que obscuros pressentimentos o faziam a tanto tempo adiar. Não surpreeendeu muito a impossibilidade de arrastar pela areia até ao mar aquele casco, de peso talvez superior a mil libras. Este primeiro fracasso revelou-lhe, todavia, a gravidade de um problema em que nunca tinha seriamente pensado. Serviu-lhe a ocasião para descobrir um aspecto importante da metamorfose que o seu espírito sofria sob a influência da vida solitária. O campo da sua atenção parecia aprofundar-se e, ao mesmo tempo, estreitar-se. Tornava-se-lhe cada vez mais difícil pensar em várias coisas ao mesmo tempo, ou até passar para outro tema de preocupação. Descobriu assim que outrem é para nós um poderoso fator de distração, não apenas porque nos pertuba constantemente e nos arranca ao pensamento atual, mas ainda porque a simples possibilidade de seu aparecimento lança um vago luar sobre um universo de objetos situados à margem da nossa atenção mas capaz a todo momento de se lhe tornar o centro. Esta presença marginal e como que fantasmal das coisas que, de imediato, não se preocupava apagara-se aos poucos no espírito de Robinson. Encontrava-se doravante rodeado de objetos submetidos à lei sumária do tudo ou nada, e fora assim que, absorvido na construção do Evasão, perdera de vista o problema de como o lançar à água. Deve-se acrescentar que fora também fortemente influenciado pelo exemplo da arca de Noé que, para ele, se tornara o arquétipo do Evasão. Construída em plena terra, longe de qualquer borda, a arca esperara que a água viesse a ela, caindo do céu ou acorrendo do alto das montanhas. (...)"
TOURNIER, Michel. Sexta-feira ou os limbos do Pacífico. Bertrand, 1985. Página 31/32.
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Naquim e aquarela, 2007.
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Este trabalho de Jonathan Braga, foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial 3.0 Não Adaptada.

Um comentário:

Unknown disse...

Ei meu amigo...
Estou aqui mostrando seus trabalhos para alguns amigos...
Como sempre... todos adoram....
Claro... e vc ainda escreve... quer mais o que né?
Bjus