quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Extra curricular

Desocupou o quarto e desceu as escadas pontualmente às 17:03. Aproximou-se da lotação alguns segundos depois, após conseguir identificar as palavras de destino que havia na parte superior do veículo. Lia-se Santa Felicidade, em Arial esticada. Mas bem poderia ser Comic Sans, sorriu no primeiro degrau da condução. Sorriu, finalmente. O cobrador descaradamente cobrou-lhe alguns centavos com um inesperado bom dia. E era um bom dia. O frio que avermelhava o nariz não escondia o azul celeste que cobria a data. Ficou a olhar, tentando identificar outras gamas camufladas nos pigmentos. Impossível, o azul anestesia era mesmo contagiante.

O rotineiro caminho não lhe causava interesse. Decorou todas as possíveis observações. A padaria Delicatessem tinha a mesma cor e a mesma luz interna. O posto de gasolina, o mesmo número de bombas. As casas, igrejas e bares estavam nos mesmos lugares. Até a senhora, que outro dia acompanho-lhe no trajeto, estava a entrar na incansável parada de sempre. Tudo como sempre. Opa... Assustou-se contorcendo o pescoço. O supermercado São José! A carne moída estava em promoção e uma faixa apontava dia de feira.


Já passava das seis e precisava incomodar-se com um jornal. Hoje, como sempre, o caderno de classificados prometia. Cumprimentou o senhor da banca e trocou objetos. Iria procurar um lugar para se deleitar com o noticiário quando encontrou um conhecido que lhe confirmou uma cerveja. Foram três e alguma dose dourada de Ipióca. Mesmo não diplomado, discursaram sobre mulheres. Como sempre. E como sempre a hora havia passado e a mensagem no celular gritava uma espera. Era a aula de relacionamentos que exigia sua presença. Despediram-se sem promessas.


O caminho para o curso era curto e o horário permitia uma caminhada. Foi pensando em contradições que atravessou o calçadão. No lugar do velho pastor, que pregava diariamente às profanidades mundanas, estava um grupo de prostitutas oferecendo o habitual. Um homem-gravata conferia as mercadorias. Apoiado na vitrine, um olhinho descalço chupava os últimos resquícios de gordura que uma unha poderia esconder. Ao contornar o antigo bonde enfatizou a consciência do mundo caótico em que vivia. Ou melhor, em que viviam. Sorriu. Se há algo que melhor aguça a indiferença, deram-lhe o nome de bebida.


Ao longe viu a luz da luminária pela janela. Um aroma peculiar já era percebido na portaria. Ela o esperava ao lado do elevador, como sempre. Abraçaram-se como se fosse a primeira vez depois de anos. Ela mais ainda. Ele para retribuir. Pela ausência de um beijo ela indagou problemas. Como sempre, respondeu. A frieza das palavras não depositou confiança, ela calou-se. Ele retirou da mochila um papel dobrado e entregou-a sentado à beirada da cama. Gostaria que você lesse agora, suspirou. Ela indignou-se por tamanha covardia e em meio aos gritos pediu franqueza nas palavras faladas. Ele emudeceu. Ela chorou. Declarou-se aos soluços, abraçou-o e prometeu mudanças. Agora, era ele quem chorava. Culpou-se do egoísmo de sentimentos e inocentou-a dos transtornos vividos. Treparam. Beberam, fumaram, sorriram e treparam.


Acordou procurando o relógio. Já passava das três quando deixou as cobertas. Em silêncio vestiu-se. Ela sonhava. Apanhou a carta não-lida em cima da cabeceira e deslizou porta afora. Nos pedaços atirados no lixo do corredor um teimou cair fora da lixeira. Apanhou-o e reconheceu poucas letras interceptadas por uma vírgula. Era uma vírgula. Reconhecia o insucesso do ponto-final e não considerava reticências. Aqui, cabia apenas a respirável virgulação.
Pontuou a espera de ônibus na madrugada que adormecia os ouvidos. O cheiro nas mãos guardava as lições da aula frequentada. Mal sabia que o curso no qual estava matriculado tinha longa duração e não garantia certificados. A cidade finalmente se calara e as observações não lhe ocupavam a cabeça. Pensava, acentuando a inseparável covardia que viria acordá-lo nas primeiras horas matinais.

N.C.


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Sem título; Xilogravura; 31 x 23 cm; jun/2007
Licença Creative Commons
Este trabalho de Jonathan Braga, foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial 3.0 Não Adaptada.

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