domingo, 7 de março de 2010

...ou a vida sem lágrimas.


"(...) Assim nós ultrapassamos essa difícil passagem, eu e minha bicicleta, ao mesmo tempo. Mas um pouco adiante fui interpelado. Levantei a cabeça e vi um policial. Isto é uma maneira elíptica de falar, pois só mais tarde, por meio de indução, ou de dedução, não sei mais, soube do que se tratava. O que você está fazendo aí?, ele disse. Estou acostumado a essa pergunta, compreendi-a imediatamente. Estou descansando, eu disse. Você está descansando, ele disse. Estou descansando, eu disse. Você quer responder à minha pergunta?, ele gritou. Aí está o que normalmente acontece quando sou encurralado numa confabulação, creio sinceramente ter respondido às perguntas que me fizeram e na verdade não é nada disso. Não vou reconstruir essa conversa em todos os seus meandros. Acabei entendendo que minha maneira de descansar, minha atitude durante o descanso, escanchado sobre a bicicleta, os braços sobre o guidão, a cabeça sobre os braços, atentava contra não sei mais o quê, contra a ordem, contra o pudor. Apontei modestamente para minhas muletas e arrisquei alguns ruídos sobre a minha enfermidade, que me obrigava a descansar como fosse possível, e não como fosse devido. Pensei compreender então que não havia duas leis, uma para os sãos e outra para os inválidos, mas somente uma, à qual deveriam se curvar ricos e pobres, jovens e velhos, felizes e tristes. Era um bom orador. Observei que não era triste. Que é que fora dizer! Seus documentos, ele disse, soube um instante depois. Não por isso, eu disse, não por isso. Sua papelada!, ele gritou. Ah, minha papelada. Ora, a única papelada que carrego comigo é um pouco de jornal, para me limpar, vocês entendem, quando vou a privada. Oh, não digo que me limpo toda vez que vou na privada, não, mas adoro estar preparado para fazê-lo, se for o caso. Isso é natural, me parece. Apavorado, tirei esse papel do bolso e meti-lhe debaixo do nariz. O dia estava bonito. Pegamos umas ruazinhas ensolaradas, poucos transeuntes, eu saltitando entre as muletas, ele empurrando delicadamente minha bicicleta, com sua mão enluvada de branco. Eu não - não me sentia feliz. Parei por um instante, assumo isso, levantei a mão e toquei a copa do chapéu. Estava pegando fogo. Sentia voltarem-se à nossa passagem rostos alegres e tranquilos, rostos de homens, de mulheres, de crianças. Me pareceu ouvir, num determinado momento, uma música ao longe. Parei para ouvi-la melhor. Ande, ele disse. Não me deixaram ouvir a música. Isso poderia ter provocado um ajuntamento. Ele me deu um safanão nas costas. Me tocaram, oh não, não na pele, mas mesmo assim, a pele sentira, esse punho duro de homem, através das suas coberturas. Prosseguindo no meu melhor passo, me entreguei àquele momento dourado, como se fosse um outro. Era a hora do descanso, entre o trabalho da manhã e o da tarde. Talvez os mais sábios, estendidos nas praças ou sentados na porta de casa, saboreassem os últimos langores, esquecidos das preocupações recentes, indiferentes às próximas. Outros, ao contrário, aproveitavam para traçar planos, a cabeça nas mãos. Havia ali um só para se pôr no meu lugar, para sentir como eu era pouco, naquela hora, aquele que parecia ser, e nesse ponto que força havia, de amarras esticadas a ponto de arrebentar? É possível. Sim, me encaminhava para essas falsas profundezas, para o falso ar de gravidade e paz, me lançava ali com todos os meus antigos venenos, sabendo que não arriscava nada. Sob o céu azul, sob o olhar do guarda. Esquecido da minha mãe, liberado dos atos, fundido na hora dos outros, dizendo a mim mesmo trégua, trégua. (...) O que é certo é que nunca mais descansei daquela maneira, os pés obscenamente apoiados no chão, os braços sobre o guidão, e sobre os braços a cabeça, abandonada e balançante. Era de fato um espetáculo triste, e um exemplo triste, para os cidadãos, que precisam tanto ser incentivados, em seu trabalho duro, e ver ao seu redor tão-somente manifestações de força, de alegria e de coragem, sem as quais seriam capazes de desmoronar, ao fim do dia, e rolar pelo chão. (...)"

BECKETT, Samuel. Molloy; tradução Ana Helena Souza. - São Paulo: Globo, 2007. páginas 39, 40, 41 e 45.

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Ilustração para livro O Abraço, de Lygia Bojunga.
Trabalho acadêmico.
Nanquim, 2006.
Licença Creative Commons
Este trabalho de Jonathan Braga, foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial 3.0 Não Adaptada.

2 comentários:

Dani Paes disse...

Nô!!!!!!!! Lindo!!!!!!

Parece gravura em metal! Amo o seu trabalho!!!!!!!!!!!!!!

Beijos.

Dudu Miranda. disse...

oo nover.. que lindo trabalho .. deu uma friozinho quando vi .. o texto e maravilhoso ... brigado por estas momentos.. abraco meu amigo saudades..