terça-feira, 1 de junho de 2010

...alto de muitos metros e velho de infinitos minutos...


Este retrato de família
Está um tanto empoeirado.
Já não se vê no rosto do pai
Quanto dinheiro ele ganhou.

Nas mãos dos tios não se percebem
As viagens que ambos fizeram.
A avó ficou lisa, amarela,
Sem memórias da monarquia.

Os meninos, como estão mudados.
O rosto de Pedro é tranquilo,
Usou os melhores sonhos.
E João não é mais mentiroso.

O jardim tornou-se fantástico.
As flores são placas cinzentas.
E a areia, sob pés extintos,
É um oceano de névoa.

No semicírculo das cadeiras
Nota-se um certo movimento.
As crianças trocam de lugar,
Mas sem barulho: é um retrato.

Vinte anos é um grande tempo.
Modela qualquer imagem.
Se uma figura vai murchando,
Outra, sorrindo, se propõe.

Esses estranhos assentados,
Meus parentes? Não acredito.
São visitas se divertindo
Numa sala que se abre pouco.

Ficaram traços de família
Perdidos no jeito dos corpos.
Bastante para sugerir
Que um corpo é cheio de surpresas.

A moldura deste retrato
Em vão prende seus personagens.
Estão ali voluntariamente,
Saberiam - se preciso - voar.

Poderiam subtilizar-se
No claro-escuro do salão,
Ir morar no fundo dos móveis
Ou no bolso dos velhos coletes.

A casa tem muitas gavetas
E papéis, escadas compridas.
Quem sabe a malícia das coisas,
Quando a matéria se aborrece?

O retrato não me responde,
Ele me fita e se contempla
Nos meus olhos empoeirados.
E no cristal se multiplicam

Os parentes mortos e vivos.
Já não distinguo os que se foram
Dos que restaram. Percebo apenas
A estranha ideia de família

viajando através da carne.

Retrato de família, Carlos Drummond de Andrade, 1945.

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Ilustração baseada na peça Albúm de família, de Nelson Rodrigues, 1945.
Nanquim, aquarela, pastel e lápis de cor; 30x25 cm; Maio/2010. Licença Creative Commons
Este trabalho de Jonathan Braga, foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial 3.0 Não Adaptada.

Um comentário:

Dudu Miranda. disse...

uau... este poema, este retrato.
parabens nover
abraco