sexta-feira, 15 de agosto de 2008

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"É assim que me sinto hoje dentro destas minhas quatro paredes ou quando percorro a cidade: oposto a. A quê? Primeiramente, aos retratos que pintei e a mim próprio ao pintá-los, mas não ao que era quando os pintava: não posso opor-me ao que fui, e hoje menos do que alguma vez: quis chamar a mim o que fui (e creio que definitivamente o fiz) como quem chama a própria sombra que se deixou ficar para trás e nos aparece suja, esfarrapada nos contornos, mas tão nossa como o suor ou o esperma. E oposto também ao que me rodeia. Creio mesmo que a maior parte desta minha tensão, é daí que vem agora. Sinto-me como o soldado excitado que se impacienta com a demora do ataque do inimigo e avança, ou como a criança fremente de energia acumulada que esgotou um jogo e logo anseia por outro. Liquidei (tirei a limpo, averiguei; destruí, aniquilei) um passado e um comportamento, e verifico que não fiz mais do que preparar um terreno: tirei as pedras, arranquei vegetações, arrasei o que tirava a vista, e desta maneira (como por outras palavras e outras razões já escrevi) fiz um deserto. Estou de pé no centro dele, sabendo que é este o lugar da minha casa a construir (se de casa se trata), mas nada mais sabendo."

Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia - São Paulo: Companhia das Letras, 1992 - Pág. 225

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Técnica qualquer

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