segunda-feira, 9 de agosto de 2010

[lugar ocupado por um corpo qualquer]

"(...) Mas o que ele encara mesmo são as pessoas, numerosas na rua a essa hora, o dia findo, toda a longa noite diante delas. As portas dos escritórios, das lojas, e as outras portas, cada uma vomita seu contingente. Os grupos assim devolvidos à liberdade ficam por um momento compactos, na calçada, na sarjeta, meio tontos, e então se deslocam, cada um no caminho que lhe foi traçado. E mesmo aqueles que se sabem condenados a trilhar o mesmo caminho, pois não há muitos a escolher, mesmo esses se cumprimentam e partem, mas com polidez, com alguma desculpa esfarrapada, ou sem palavras, pois cada um tem seus hábitos e conhece os dos outros. Tanto pior para quem tiver vontade, excepcionalmente, de acompanhar um pouco, em sua recuperada liberdade, num pequeno trecho do caminho, um semelhante, não importa quem, a não ser que por um feliz acaso ele acabe tropeçando em alguém que sofre da mesma necessidade. Então, feliz, darão alguns passos juntos, depois se separarão, cada um dizendo-se talvez: Agora ele vai se achar com direito a tudo. Ou uma frase mais curta provavelmente, e mesmo inacabada, no modelo daquelas que nos fazem descansar das minúcias da vida em sociedade. Nessa hora, pois, que reabre para tanta gente o caminho do repouso e das distrações, os casais, cuja maior parte se encontra apenas por uma simples questão de interesse erótico, são pouco numerosos, comparados com os solitários que cruzam as ruas e esquinas em todos os sentidos, obstruindo o acesso aos lugares de prazer, com os cotovelos nos parapeitos das janelas, encostado, de longe em longe, nos muros da cidade. Mas não demoram chegar onde estão sendo esperados, em sua própria casa ou na casa de outros, na rua, como se diz, num lugar público ou num ponto combinado, muitas vezes na porta de uma casa, debaixo de uma entrada coberta, na expectativa da chuva. E os primeiros a chegar não têm que esperar muito, pois todos se apressam uns para os outros, sabendo como é breve o tempo que lhes resta para dizer tudo o que trazem no coração e nas vísceras, e para fazer as coisas que têm que fazer juntos, as coisas que não se pode fazer sozinho. (...)"
BECKETT, Samuel. Malone Morre. 1951. Trad. Paulo Leminski. São Paulo: Círculo do livro, 1986. Pág. 71/72
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Aquarela, lápis, nanquim, 2010, 20x15cm
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2 comentários:

Lirou Lucas disse...

Ótimo texto!!! Pior é se ver nele...
Misto de ilustra mista! ;)

ju disse...

lindo o todo, me lembrou o trecho de uma música que a nara leão canta:

"ah, quanta dor vejo em teus olhos, quanto pranto em teu sorriso, tão vazias tuas mãos...de onde vens assim cansado? de que dor, de qual distância? de que terras? de que mar?"