terça-feira, 19 de julho de 2011

des/conhecer-te

"Um homem foi bater à porta do rei e disse-lhe, Dá-me um barco. (...) E tu para que queres um barco, pode-se saber, foi o que o rei de facto perguntou, (...) Para ir à procura da ilha desconhecida, respondeu o homem, Que ilha desconhecida, perguntou o rei disfarçando o riso, como se tivesse na sua frente um louco varrido, dos que têm a mania das navegações, a quem não seria bom não contrariar logo de entrada, A ilha desconhecida, repetiu o homem, Disparate, já não há mais ilhas desconhecidas, Quem foi que te disse, rei, que não há ilhas desconhecidas, Estão todas no mapa, Nos mapas só estão as ilhas conhecidas, E que ilha desconhecida é essa de que queres ir à procura, Se eu pudesse dizer, então não seria desconhecida, A quem ouviste tu falar dela, perguntou o rei, agora mais sério, A ninguém, Neste caso, por que teimas em dizer que ela existe, Simplesmente porque é impossível que não exista uma ilha desconhecida, E vieste aqui para me pedires um barco, Sim, vim aqui para pedir-te um barco, E tu quem és, para que eu te dê, E tu quem és, para que não me dês, Sou o rei deste reino, e os barcos do reino pertencem-me todos, Mais lhe pertencerás tu a eles do que eles a ti, Que queres dizer, perguntou o rei, inquieto, Que tu, sem eles, és nada, e que eles, sem ti, poderão sempre navegar, Às minhas ordens, com os meus pilotos e meus marinheiros, Não te peço marinheiros nem piloto, só te peço um barco, E essa ilha desconhecida, se a encontrares, será para mim, A ti, rei, só te interessam as ilhas conhecidas, Também me interessam as desconhecidas quando deixam de ser, Talvez esta não se deixe conhecer, Então não te dou o barco, Darás. Ao ouvirem esta palavra, pronunciada com tranquila firmeza, os aspirantes à porta das petições, em quem, minuto após minuto, desde o princípio da conversa, a impaciência vinha crescendo, e mais para se verem livres dele do que por simpatia solidária, resolveram intervir a favor do homem que queria o barco, começando a gritar, Dá-lhe o barco, dá-lhe o barco. (...) Perante uma tão iniludível manifestação da vontade popular e preocupado com o que, neste meio tempo, já haveria perdido na porta dos obséquios, o rei levantou a mão direita a impor silêncio e disse, Vou dar-te um barco, mas a tripulação terás de arranjá-la tu, os meus marinheiros são-me precisos para as ilhas conhecidas. (...)


(...) O sol havia acabado de sumir-se no oceano quando o homem que tinha um barco surgiu no extremo do cais. Trazia um embrulho na mão, porém vinha sozinho e cabisbaixo. A mulher da limpeza foi esperá-lo à prancha, mas antes que ela abrisse a boca para se inteirar de como lhe tinha ocorrido o resto do dia, ele disse, Está descansada, trago aqui comida para os dois, E os marinheiros, perguntou ela, Não veio nenhum, como podes ver, Mas deixaste-os apalavrados, ao menos, tornou ela a perguntar, Disseram-me que já não há ilhas desconhecidas, e que, mesmo que as houvesse, não iriam eles tirar-se do sossego dos seus lares e da boa vida dos barcos de carreira para se meterem em aventuras oceânicas, à procura do impossível, como se ainda estivéssemos no tempo do mar tenebroso, E tu, que lhes respondeste, Que o mar é sempre tenebroso, E não lhes falaste da ilha desconhecida, Como poderia falar-lhes eu duma ilha desconhecida, se não a conheço, Mas tens a certeza de que ela existe, Tanta como a de ser tenebroso o mar, Neste momento, visto daqui, com aquela água cor de jade e o céu como um incêndio, de tenebroso não lhe encontro nada, É uma ilusão tua, também as ilhas às vezes parece que flutuam sobre as àguas, e não é verdade, Que pensas fazer, se te falta a tripulação, Ainda não sei, Podíamos ficar a viver aqui, eu oferecia-me para lavar os barcos que vêm à doca, e tu, E eu, Tens com certeza um mester, um ofício, uma profissão, como agora se diz, Tenho, tive, terei se for preciso, mas quero encontrar a ilha desconhecida, quero saber quem sou eu quando nela estiver, Não o sabes, Se não sais de ti, não chegas a saber quem és (...)"


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Trecho de O Conto da Ilha Desconhecida, José Saramago, 1997.


Texto completo disponível em: releituras.com/jsaramago_conto.asp
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2 comentários:

Dudu Miranda. disse...

massa nover, parabens, saudade!

Dudu Miranda. disse...

O futuro, a ansia pelo conhecimento , a verdade nao alcancada, o lamento. O barco pode nos levar, a mao pode escrever um livro. Adoro como saramago escreve, sem pontos sem regras, livre. A liberdade pode ser a ilha, pode ser a vontade de conhecer a ilha , pode ser o nao conhecer da ilha, pode ser o mar , o barco tirado do tirano que possui tudo. A ilha, talvez, nover, seja nossa conversa. Saudades. dudu.